I INTERNATIONAL EXPERIENCE PERUGIA - ITÁLIA
Constitucionalismo Transformador: Impactos Democráticos III
CONSTITUCIONALISMO TRANSFORMADOR E JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL: IMPACTOS DEMOCRÁTICOS E CRISE EPISTEMOLÓGICA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO
José Querino Tavares Neto
José Alcebiades De Oliveira Junior
Danielle Jacon Ayres Pinto
Introdução
A presente reflexão parte de uma premissa fundamental desenvolvida ao longo de anos de pesquisa no campo do Direito Constitucional e da Justiça Socioambiental. Tais perspectivas foram anteriormente exploradas em artigos e obras, como no trabalho "Perspectivas para um Direito Constitucional em Cenários de Crise de Paradigmas" do professor José Querino Tavares Neto. O ponto de partida central reside na necessidade de deslocamento do eixo epistemológico que estrutura o Direito Constitucional brasileiro, com especial ênfase no campo socioambiental.
É imperativo superar a tradicional dicotomia entre legalidade e ilegalidade, direito e norma, legitimidade e legalidade. Essas estruturas conceituais, alicerçadas em um modelo de racionalidade econômica, continuam a reproduzir as desigualdades históricas, sustentando uma lógica de exploração inerente à relação capital versus trabalho e à centralidade das finalidades de mercado. Tal concepção tem produzido uma distorção hermenêutica da Constituição de 1988, a qual, apesar de suas cláusulas pétreas, vem sendo progressivamente desfigurada. Este processo tem resultado na manutenção de práticas de (re)escravização das populações tradicionais, indígenas e quilombolas, fenômeno que se intensificou no contexto recente de aparelhamento estatal.
O cenário atual revela um preocupante recrudescimento de discursos e práticas que reforçam a hierarquização social e de gênero, como evidenciado em episódios recentes de violência política e simbólica, a exemplo da agressão dirigida à ministra Marina Silva por parte de senadores da República do Brasile m junho de 2025. Este episódio, entre outros, configura um ataque direto aos pilares democráticos e à dignidade da representação pública.
Além disso, observa-se um processo de patrulhamento ideológico que associa, de forma reducionista e distorcida, temas como constitucionalismo, direitos humanos e socioambientalismo a posições político-partidárias específicas. Essa manipulação discursiva resulta em uma tentativa sistemática de criminalização de movimentos sociais e pautas identitárias.
É fundamental reconhecer que tais fenômenos não são exclusivos de um único governo. Embora o bolsonarismo tenha exacerbado essa dinâmica, trata-se de um processo histórico, alimentado por diversos setores do Estado e da sociedade civil. O aparelhamento do sistema de justiça, com destaque para a relação entre setores do Judiciário e o Ministério Público, como exemplificado pelo caso Moro/Dallagnol, expõe a fragilidade institucional. Mesmo após as decisões contundentes do Supremo Tribunal Federal (STF), observa-se a ausência de uma resposta institucional mais ampla e assertiva que repudie tais práticas.
Diante desse contexto, o processo de racionalização da ideologização de temas como direitos indígenas, igualdade de gênero, questões raciais e ambientais, bem como os movimentos sociais como o Movimento Sem Terra (MST), torna-se uma estratégia deliberada de criminalização. A resposta estatal aos acontecimentos de 8 de janeiro de 2023 demonstra que tais eventos não são isolados, mas representam a materialização da fragilidade do próprio Constitucionalismo Transformador brasileiro, incapaz de resistir integralmente às forças regressivas. Como afirmou Albert Camus (1996), "é apenas uma questão de tempo para que os ratos retornem".
A Dialética do Esclarecimento e a Alienação Contemporânea
Nesse sentido, essa reflexão propõe, portanto, uma análise que não pode se dissociar de uma ponderação epistemológica profunda. Nesse sentido, é fundamental recorrer à obra de Adorno e Horkheimer (1985), "Dialética do Esclarecimento", para compreender os limites da racionalidade moderna. A pergunta central permanece: qual é o papel da academia e do próprio Direito na tarefa de libertar os sujeitos do medo e da dominação?
Mesmo após mais de três décadas de vigência da Constituição de 1988, a sociedade brasileira continua submetida a formas de sujeição que reiteram estruturas autoritárias. O processo de desencantamento do mundo, caracterizado pela alienação dos sujeitos e pela coisificação das relações sociais, conforme Marx (1982) e Weber (1993), permanece inacabado.
A necessidade de reanálise dos limites da linguagem emancipatória torna-se urgente. Trata-se de diferenciar categorias como identidade, sujeito e objeto, reconhecendo a insuficiência das soluções produzidas por uma racionalidade abissal. Neste aspecto, obras literárias como "Educação Sentimental", de Flaubert (2007), tornam-se igualmente relevantes para uma reflexão crítica. De outra parte, Han (2015; 2018), ao analisar a sociedade contemporânea, adverte para os riscos da sociedade do desempenho e da exclusão, evidenciando os novos apartheids sociais, raciais e de gênero. A lógica produtivista e individualista transforma docentes e instituições em prestadores de serviços rápidos, o que contribui para o esgotamento intelectual e emocional das categorias profissionais e acadêmicas.
A reificação das relações sociais, tal como descrita por Marx (1982), materializa-se na naturalização dos processos de dominação sobre a natureza, resultando em uma forma de narcisismo primário, como analisa Lacan (1998) em sua teoria do "estádio do espelho". Essa alienação coletiva, por sua vez, compromete a capacidade reflexiva da sociedade e perpetua a alienação.
A Crise do Método e os Limites da Ciência Jurídica Tradicional
Essa conjuntura evidência a urgente necessidade de uma revisão epistemológica profunda, que dialogue com as críticas formuladas por pensadores como Morin (2005), Weber (1993), Feyerabend (2003) e Andery (2007). Conforme argumenta Feyerabend (2003), a ciência deve ser compreendida como uma dentre várias formas de produção do conhecimento, não podendo ser tratada como única via legítima para a compreensão da realidade. Essa percepção é especialmente relevante para o campo jurídico, cujas práticas e saberes estão historicamente condicionados por um método rígido, fragmentado e disciplinar.
De acordo com Andery et al. (2007), o método científico reflete as condições históricas, sociais e políticas de sua construção. Assim, a análise acadêmica do Constitucionalismo Transformador deve reconhecer as limitações inerentes ao método tradicional, abrindo espaço para abordagens interdisciplinares e críticas, fundamentais para a compreensão da complexidade das relações socioambientais no Brasil.
O contexto recente da aprovação da Lei Geral do Licenciamento Ambiental sem a devida participação popular e contra manifestações de especialistas e do próprio Ministério do Meio Ambiente é um exemplo dessa necessidade de revisão epistemologica. Tal processo legislativo, ocorrido em pleno ano da COP30 e do Global Citizen Festival: Amazônia, reflete a subordinação das instituições democráticas aos interesses econômicos mais imediatos (Senado Federal, 2025).
A análise bourdieusiana da produção simbólica do direito (Bourdieu, 1998) é elucidativa para compreender o funcionamento das estruturas jurídicas em um ambiente de dominação capitalista. O poder simbólico do Judiciário, construído em um contexto histórico de desigualdades estruturais, reproduz formas de violência simbólica e física, dificultando a consolidação de um verdadeiro Constitucionalismo Transformador.
A atuação do Estado brasileiro, especialmente durante o governo Bolsonaro, ilustra uma estratégia sistemática de necropolítica ambiental (Mbembe, 2018) e a dificuldade de fazer valer o constitucionalismo transformador. As nomeações de militares e agentes de segurança sem formação e conhecimento na área para cargos de gestão ambiental, bem como as alterações normativas promovidas pela Instrução Normativa nº 09 da FUNAI, evidenciam um projeto de desmonte das políticas de proteção às comunidades tradicionais.
A omissão estatal na crise humanitária enfrentada pelos Yanomami, apenas reconhecida após a ampla divulgação de imagens de extrema miséria, reforça a seletividade do aparato estatal (G1, 2021). Essa prática revela o funcionamento de um Estado que naturaliza a exclusão e a violência, enquanto mantém um discurso formal de proteção aos direitos fundamentais.
Nesse sentido, a análise crítica das estruturas sociais brasileiras aponta para a permanência de um patrimonialismo estrutural, como argumenta Souza (2017). As relações entre elites econômicas, instituições estatais e o sistema jurídico revelam a continuidade de uma lógica excludente, moldada historicamente pela Casa Grande e Senzala (Freyre, 2003). Dados do IBGE (2025) demonstram que a desigualdade racial e de gênero permanece estrutural, afetando de maneira desproporcional a população negra e as mulheres nas relações de trabalho. Assim, a precarização das condições laborais, o aumento do trabalho análogo à escravidão e a sub-representação de grupos marginalizados no Congresso Nacional reforçam a centralidade da questão epistemológica. Não se trata apenas de uma crise de representatividade política, mas de uma crise profunda das estruturas de conhecimento que orientam a produção e a aplicação do direito.
Em suma, o desafio contemporâneo consiste em fortalecer um Constitucionalismo verdadeiramente transformador, capaz de romper com as estruturas históricas de dominação e exclusão. A superação dessa crise exige uma articulação entre academia, movimentos sociais, instituições democráticas e sociedade civil, com vistas à construção de um sistema de justiça socioambiental mais equitativo e inclusivo. É imprescindível reafirmar o papel da política como categoria central para a efetivação dos direitos fundamentais, evitando a captura do processo decisório por interesses corporativos e antidemocráticos. Retomar a cidadania ativa, como proposto por Arendt (1998), constitui passo essencial para evitar o aprofundamento do ciclo de exclusão e violência que marca a realidade brasileira.
Referências bibliográficas
ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
ANDERY, M. A. P. et al. Para compreender a ciência: uma perspectiva histórica. São Paulo: Cortez, 2007.
ARENDT, H. A condição humana. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.
BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
FEYERABEND, P. Contra o método. São Paulo: Unesp, 2003.
FREYRE, G. Casa-grande & senzala. São Paulo: Global Editora, 2003.
G1. MPF cobra do Ministério da Saúde reforço na estrutura para atender povo Yanomami após imagens revelarem abandono. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2021/11/15/mpf-cobra-do-ministerio-da-saude-reforco-na-estrutura-para-atender-povo-yanomami-apos-imagens-revelarem-abandono.ghtml. Acesso em: 22 jun. 2025.
HAN, B. C. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
HAN, B. C. No enxame: perspectivas do digital. Petrópolis: Vozes, 2018.
JESSÉ, S. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.
LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
MARX, K. Prefácio à crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 1982.
MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018.
MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005.
SENADO FEDERAL. Senado aprova projeto da Lei Geral do Licenciamento Ambiental. Agência Senado, 21 maio 2025.
WEBER, M. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1993.
ISBN:978-65-5274-099-1
Trabalhos publicados neste livro: